sábado, 31 de maio de 2008

Vida de desempregado


De amanhã, acorda. Vista para um lado e outro. Observa os móveis do quarto. Olha o relógio e ainda é cedo. Não, é tarde. Cedo e tarde pra quê? Não se sabe e nem importa a essa hora do dia. Acordar e levantar. Escova de dente, pasta de dente, dentes, água e toalha. Todo dia, o dia todo (logo após as refeições). Um espelho. Imagem distorcida vira carimbo esteticamente tecido. Os instrumentos: escova de cabelo, pinça, creme, protetor solar, batom.

O pijama não é velho. Presente da avó do último aniversário. É xadrez de tons claros. O companheiro do dia. O mais presente. Inseparável. Contém todos os fios de cabelo que insistem em não se perder pelo vento. Bactérias em simbiose.

Não há regras no ambiente. Não existem horários, tarefas ou compromissos. O telefone não toca e na caixa de emails só há spams. O dia não passa. Não existe razão para sair, comprar, badalar. O mundo é ócio que corrói o osso e fere o pensamento. A melancolia dos dias cinzentos e frios. A sobriedade das tardes claras. Tudo irrita, sufoca.

Estar no mundo é existir. Não há saída. Atividade e pensamento ocupam espaço pra vida passar mais rápido. Não existe razão, só a busca. Viver é comprar uma ilusão de ótica sem garantia.

A noite cai. Pijama no corpo. Escova de dente, pasta de dente, dentes, água e toalha. Todo dia até o fim do dia. Olha o relógio. Não é cedo e nem é tarde. Hora de esperar pelo amanhã, o mundo girar, a vida passar. Seu ciclo eterno de mudanças em retrospectivas.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Mudando histórias


Era uma noite calma, dessas que parecem fim de domingo, com ar de preguiça e cheiro de lasanha requentada do jantar. No final da rua cheia de casas velhas e arquitetura do século passado, uma festa quebrava o silêncio em meio a uma penumbra moldurada pelos raios de lua cheia. O barulho vinha de uma casa noturna, um lugar freqüentado por recém casados e jovens a procura de um par para dançar. Eles chegavam cheios de si, em trajes elegantes e sorrisos fáceis. Procuravam e exalavam felicidade e dispensavam olhares tristonhos e solitários, como os meus.

Para chegar até lá, andei na contra luz de poste em poste na tentativa de não ser identificada, notada e flagrada por quem quer que fosse. Posicionei-me próximo a pilastra de entrada coberta pela escuridão da luminária quebrada, instalada na entrada. Observei bem os convidados, me olhei na pouca luz e lembrei da minha roupa composta por jeans surrado, camiseta branca e tênis de multinacional. E se eu entrasse? Seria um ato indelicado? Desafiador? Tirei uma nota de Real amassada em um dos bolsos e antes que o segurança fizesse qualquer pergunta entrei sem me ater a nada.

No ambiente, o som era ensurdecedor. Moças prendadas e recatadas se misturavam as jovens moderninhas dançando twist em pleno século XXI. Entre os rapazes, olhares interessados em noites de amor e abraços que emolduravam cinturas femininas pela pista de dança. Embriagados pelo ar, pela luz e (é claro!) pelo álcool, sorrisos marotos e risadas altas brotavam com a facilidade de um gozo em cena de filme pornô. A felicidade reinava e a minha presença fria e de olhar cabisbaixo não incomodava ninguém.

Na tentativa de saber o que afinal de contas eu fazia naquela festa pagã (e sem trajes apropriados), olhei em outras direções a procura de um consolo ou uma cena que me provocasse uma risada. Não encontrei. Passeei minha retina entreaberta por todos os cantos e não vi nada que chamasse atenção. Sentei-me em uma cadeira vazia de uma mesa deslocada posicionada no fundo do salão. Fumei meu último cigarro e lamentei minha existência.

No último trago, observei um grupo a minha frente composto por rapazes com ternos de luxo e moças com vestidos coloridos e brilhantes. Entre eles, um olhar faceiro e andar latino chamaram minha atenção pela desenvoltura e naturalidade. Vestido com uma camisa escura e um paletó cinza sobreposto a uma gravata listrada, o homem cheio de si incomodava todas as meninas chamando-as para dançar. De repente... sorrio.

Dançando abraçado a um par com um vestido azul, ele observa todos os lados. De repente, o homem me flagra com as pupilas dilatadas e sorriso no rosto. O faceiro faz rodopios, reforça o olhar e solta a moça me convidando para uma valsa que a banda começa a tocar. Envergonhada recuso o primeiro pedido, mas não resisto as suas mãos, do tamanho das minhas, me chamando para tomar um drinque no bar.

Subimos um andar acima do salão onde era possível ver o reflexo da lua e ouvir conversas de dois charlatões disputando uma companhia pra o próximo jantar. Entre beijos molhados e carinhos amortizados, descubro uma voz com cheiro e gosto de doce-de-leite. Sinto-me sinestésica e vejo cores a cada palavra bonita e promessas de encontros posteriores. Resistente ao charme e a experiência daquele “moreno tropical” de estatura mediana, vou negando pedidos e ao mesmo tempo estendendo a noite até o dia clarear.

Na manhã seguinte, acordo com cheiro de álcool destilado. Com a mesma calça jeans do dia anterior, observo sobre meu corpo um edredom desconhecido. Ao redor, paredes assimétricas estampam uma raquete de tênis e folhas de papel coloridas - brindes de um disco de vinil. Ao meu lado, um corpo estirado em cima de colchões sobrepostos não se intimida com a claridade solar vinda da janela. Tento me levantar sem fazer barulho e ouço de novo a voz sonolenta com cheiro de doce-de-leite. “Fica!”

Sabendo o fim daquela história de intrigas e sentimentos desfavorecidos, lavo meu rosto a procura da realidade. Beijo-lhe a boca na busca pelos fragmentos das fantasias ainda não sentenciadas. Dou o último abraço já apagando as lembranças. No caminho de volta, parto sem olhar para trás e repito silenciosamente em mente um mantra conhecido: apenas um olhar na multidão... um olhar na multidão... um olhar na multidão...